A categoria de produtos isentos de lactose ou com baixo teor de lactose é um dos mercados que mais cresce na indústria de lácteos, pois oferece um apelo de saúde amplo e crescente para os consumidores.
Contudo, o desenvolvimento de produtos com baixo teor ou isentos de lactose é uma tarefa difícil para os fabricantes, sendo o principal desafio o uso de alternativas que sejam bem aceitas pelas pessoas intolerantes à lactose.
Atualmente, existem soluções que se originam da hidrólise da lactose em glicose e galactose com o uso da enzima lactase, que previne a ocorrência de sintomas de intolerância à lactose. Dois tipos diferentes de lactase estão disponíveis comercialmente: lactases neutras e lactases ácidas. A lactase neutra é usada principalmente na produção de produtos lácteos isentos de lactase em escala industrial. A lactase ácida está disponível para os consumidores como um suplemento nutricional a ser tomado em conjunto com produtos lácteos regulares e atua no estômago.
Industrialmente, a enzima utilizada para a produção de produtos lácteos isentos de lactose tem sido, tradicionalmente, a β-galactosidase neutra derivada da levedura de leite Kluyveromyces lactis.
Todas as enzimas comerciais de Kluyveromyces lactis apresentam basicamente o mesmo desempenho na hidrólise da lactose, mas diferentes qualidades de produto e teores de pureza estão disponíveis. Outras galactosidases comerciais (Bacillus circulans ou Aspergillus oryzae) são menos adequadas para a produção de produtos isentos lactose na maioria das matrizes lácteas, devido aos diferentes valores de pH ou temperatura, sendo comercializadas principalmente para a produção de galactooligossacarídeos ou como nutrientes. Um recente desenvolvimento de mercado é o fornecimento de β-galactosidase produzidas com hospedeiros de produção geneticamente modificados.
A indústria utiliza os processos por batelada e asséptico para produção de leite isento de lactose; ambos usando enzimas lactase solúveis.
No processo por batelada (pré-hidrólise), uma amostra de lactase neutra é adicionada a um tanque de leite cru ou termizado e, geralmente, incubada por aproximadamente 24 horas sob agitação lenta para evitar a formação de creme. Como o leite nesse estágio ainda não é estéril, esse processo deve ser realizado em condições de resfriamento (normalmente 40C a 80C) para evitar o crescimento microbiano. Após essa incubação, o leite é pasteurizado, homogeneizado e embalado. Alguns produtores de leite UHT (Ultra High Temperature) usam o processo por batelada, embora o processo asséptico tenha se tornado muito mais popular para esse segmento de mercado nos últimos anos. Uma vez que a enzima é inativada durante a pasteurização/esterilização do leite, nenhuma atividade residual da enzima permanece no produto final quando o leite é produzido através do processo por batelada, o que é uma vantagem em termos de regulamentação e rotulagem em alguns países.
É importante considerar um número de aspectos quando se usa o processo por batelada para fabricação de leite isento de lactose. Um deles se refere a dosagem da enzima, que deve ser suficiente para atingir o limite requerido para a ausência de lactose durante o tempo limitado e a baixa temperatura da incubação. Portanto, a dosagem da enzima é relativamente alta. Enzimas disponíveis para esse processo devem ser selecionadas por sua atividade relativamente alta em pH neutro e baixa temperatura. O controle do processo é elevado, uma vez que a conversão da lactose pode ser medida no tanque e que a dosagem enzimática ou o tempo de incubação podem ser adaptados durante o processo.
Outro aspecto a ser considerado é que a incubação por batelada requer a ocupação de um tanque na fábrica e a retenção do leite por um dia, ou seja, o processo é descontínuo, o que pode representar um problema para algumas fábricas, especialmente quando a produtividade é alta. Uma lactase com atividade específica mais alta sob essas condições pode ajudar a reduzir o tempo de produção e, portanto, pode aumentar o rendimento da fábrica. Como a pasteurização do leite é adiada por um dia, a qualidade do leite deve ser impecável para evitar a deterioração microbiana.
Deve-se levar em consideração também que o produto lácteo produzido com o processo descontínuo é relativamente insensível a possíveis atividades secundárias na preparação enzimática, devido ao tempo limitado de armazenamento do leite em condições refrigeradas e a pasteurização/esterilização após a incubação da enzima, inativando a maioria das atividades enzimáticas. Embora no passado algumas preparações de lactase apresentassem atividades colaterais proteolíticas, esses problemas relacionados ao leite isento de lactose produzido por processo descontínuo foram eliminados.
Outro aspecto importante é a duplicação da doçura do leite. Como a hidrólise da lactose leva à duplicação da doçura do leite, foram desenvolvidos processos para remover parte da lactose usando técnicas de filtração combinadas com a hidrólise da lactose remanescente para que uma doçura exata seja regenerada. Existem leites isentos de galactose de excelente qualidade produzidos por esse processo e o sabor é quase idêntico ao leite normal.
Já no processo asséptico (pós-hidrólise), o leite é esterilizado pela primeira vez usando o procedimento UHT, após o qual uma preparação de lactase estéril é injetada no leite imediatamente antes da embalagem; a conversão da lactose ocorre na embalagem. Como o leite UHT é frequentemente mantido em quarentena por aproximadamente três dias em temperatura ambiente, há tempo suficiente para uma hidrólise completa antes que o leite seja disponibilizado para comercialização. Como não há período de quarentena para o leite pasteurizado, o processo asséptico não é usado para esse tipo de leite isento de lactose.
Essencialmente, existem dois procedimentos diferentes para se obter uma lactase estéril. No primeiro procedimento, a enzima lactase é pré-esterilizada pelo fabricante da enzima, sendo necessário um equipamento especial de dosagem estéril para a injeção esterilizada. No segundo procedimento, a enzima é esterilizada por filtragem imediatamente antes da adição ao leite estéril na fábrica de laticínios.
Nesse processo, um número de aspectos também deve ser levado em consideração, como por exemplo, a dosagem da enzima, que pode ser muito menor em comparação ao processo por batelada, já que tanto o tempo de incubação quanto a temperatura são maiores. O controle do processo está, no entanto, ausente, uma vez que a enzima está ativa apenas na embalagem final do leite.
Outro aspecto a ser considerado é que o processo asséptico exige equipamentos especiais e custos com consumíveis; especialmente a filtração em fábrica requer operadores altamente qualificados para evitar a contaminação microbiana do leite durante a injeção de lactase. No entanto, o processo pode ser totalmente contínuo quando organizado adequadamente, o que é uma grande vantagem para as fábricas que exigem alto rendimento.
O processo asséptico para a produção de leite UHT isento de lactose só pôde ser totalmente desenvolvido após grandes melhorias na qualidade das enzimas lactase. Além da remoção da atividade proteolítica lateral, verificou-se também que a atividade lateral da aril sulfatase na preparação de lactose pode gerar graves efeitos terapêuticos durante o armazenamento, devido à formação de ρ-cresol a partir do cresol sulfonado que está naturalmente presente no leite. Portanto, o produtor de leite UHT isento de lactose deve considerar o uso de lactases da mais alta qualidade para esse processo, a fim de evitar problemas durante o prazo de validade. As lactases livres de aril sulfatase estão atualmente disponíveis comercialmente.
Por fim, a hidrólise da lactose no leite leva a uma maior presença de monossacarídeos e, portanto, a reação de Maillard é mais eficiente. A proteólise limitada por proteases presentes no leite ou originadas da preparação de lactase pode aumentar a reação. Isso resulta no aumento da formação de sabor, no escurecimento do leite isento de lactose, quando comparado ao leite normal, e em um valor nutricional reduzido, quando armazenado em temperaturas elevadas. O aumento da reação de Maillard é o fator determinante mais importante de shelf life em leites UHT isentos de lactose, comparado ao leite UHT regular. Embora tenha sido sugerido no passado que a produção de leite UHT zero lactose usando o processo por batelada pudesse levar a mais escurecimento comparado ao leite produzido via processo asséptico, dados recentes mostram que as condições de armazenamento (temperatura) e escolha da lactase são muito mais relevantes para a determinação do prazo de validade.
Já em produtos lácteos fermentados, o processo mais confiável é a digestão enzimática completa da lactose, o que pode ser feito incubando o leite com lactase antes da pasteurização ou adicionando a lactase juntamente com a cultura após a pasteurização do leite. A maioria dos produtores de iogurte optam pela abordagem de co-hidrólise. Quando a lactase (neutra) é adicionada ao leite ao mesmo tempo que a cultura de iogurte, resta apenas um tempo limitado para a digestão da lactose. A maioria das lactases neutras são completamente inativada em pH maior que 5,5, o qual é alcançado após 2,5 a 3 horas de incubação em um processo regular de fabricação de iogurte. Portanto, a dosagem de lactase deve ser relativamente alta para obter o status isento de lactose.
Uma grande vantagem do uso de lactase na produção de iogurte é o aumento da doçura devido a quebra da lactose. Assim, o açúcar total adicionado pode ser reduzido em 1,5g a 2g/100g, sem alterar o perfil de sabor. Outra vantagem da digestão da lactose no iogurte é que a pós-acidificação durante o prazo de validade pode ser reduzida quando se utilizam culturas específicas de iogurte. Aparentemente, algumas bactérias do iogurte são menos ativas na ausência de lactose ou apresentam dificuldade em mudar de uma fonte de carbono (lactose) para outra (glicose), levando a uma melhor estabilidade sensorial do produto.
Muitos outros produtos lácteos isentos de lactose são fabricados usando tratamento enzimático. O leite aromatizado é fabricado por um processo semelhante ao processamento do leite. No entanto, o excesso de doçura pelo tratamento com lactase é uma vantagem, uma vez que permite a redução da adição de açúcar, similar ao processamento da maioria dos iogurtes. Em alguns leites aromatizados, como o leite achocolatado altamente açucarado, a hidrólise da lactose pode ser insuficiente para substituir totalmente a adição de açúcar, de modo que a adição de adoçantes pode ser necessária.
O sorvete também pode ser fabricado sem lactose, usando leite isento de lactose e pós na mistura de sorvete ou adicionando a enzima lactase após a pasteurização e incubação durante o período de envelhecimento, antes do congelamento. Devido ao aumento no teor de monossacarídeos após a hidrólise da lactose, o ponto de congelamento da mistura de sorvete diminui, o que permite a obtenção de um sorvete mais macio na mesma temperatura. Embora para algumas sobremesas congeladas isso possa ser uma vantagem, também leva a um derretimento mais rápido. O tratamento com lactase também é usado em sorvetes para prevenir a cristalização da lactose. Quando soro de leite em pó ou WPC é usado na mistura de sorvete, a quantidade de lactose pode ser alta o suficiente para formar cristais durante o congelamento, o que gera um defeito sensorial. O tratamento com lactase pode prevenir a formação de lixiviação no sorvete ao quebrar a lactose em glicose e galactose, que são mais solúveis em baixa temperatura. A hidrólise da lactose aumenta a viscosidade aparente da mistura de sorvetes, diminui o ponto de congelamento, aumenta a doçura, permitindo uma redução de 25% na adição de açúcar, diminui a lixiviação e melhora a aceitabilidade geral do sorvete.
O doce de leite é produzido aquecendo o leite concentrado açucarado até que a caramelização ocorra devido a reação de Maillard. O tratamento do leite com lactase não apenas torna o produto final isento de lactose, como também estimula a reação de Maillard, devido a liberação de galactose. Assim, o tratamento com lactase pode aumentar o sabor e a formação de cor no processo de produção de doce de leite. Além disso, assim como no sorvete, a hidrólise da lactose previne a ocorrência de lixiviação quando o produto final é armazenado refrigerado.
Para muitos laticínios, o soro de leite é um subproduto valioso sendo fracionado em proteínas, lactose e sais de leite, e comercializado como WPC, WPI e diferentes graus de lactose. O sabor lácteo doce do soro líquido ou permeado de soro de leite também pode ser melhorado pela digestão da lactose com uma lactase neutra, seja na forma livre, imobilizada ou como suspensão de células, antes de concentrá-la em um xarope ou pó. Tais produtos isentos de lactose podem ser utilizados como edulcorantes em aplicações de sorvetes, confeitaria ou panificação. Uma vantagem adicional da hidrólise da lactose no soro ou no soro permeável é que um xarope microbialmente estável pode ser formado sem problemas de cristalização, poupando os custos de secagem. Dependendo do pH do substrato, a lactase neutra ou ácida pode ser usada para a conversão.
Atualmente, o mercado disponibiliza lácteos fermentados, queijos duros, doce de leite com lactase e leites com reduzido teor de lactose, entre outros produtos que possibilitam ao consumidor a ingestão adequada de nutrientes, minimizando os riscos de comprometimento da saúde.